MINHA CABOQUINHA

Ariel
4 min readJul 26, 2020

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O senhor Ursulino costumava chamar sua esposa de minha caboca. O significado real dessa palavra não importava, era um apelido carinhoso, ele gostava de chamá-la dessa forma. Meu avô também gostava de fazer chá de casca de laranja, então a gente sempre via cascas nas janelas esperando para virarem chá. Se estivesse meio ruim do estômago, dale chá de casca de laranja!

Ele passava creolina na parte de baixo da porta da cozinha quando estava quase para anoitecer e na pia por volta da meia-noite, tudo isso no intuito de evitar que baratas aparecessem. Quando eu estava com tosse ou gripe ele fazia um “lambedor" com mel e limão e eu tomava tudo. Ele também dizia para usar Vick. Meu avô sempre tinha Vick e Minancora. Toda noite ele e a vó desciam para lanchar antes de irem dormir, geralmente tomavam um copo de leite com umas bolachinhas de água e sal.

Nas vezes que o vô dormia à tarde, o rádio tava sempre ligado e o volume lá nas alturas. O seu Ursulino era meio surdo, então a TV nunca estava em um volume mais baixo do que 70. Como minha avó sempre estava na sala assistindo televisão com ele, a audição dela também ficou um pouco prejudicada com o tempo devido à exposição ao som altíssimo. Nossa, quando a vó tentava conversar com o vô e repetia várias vezes e ele não conseguia escutar ela ficava brava à beça.

Quando minha avó saía para ir ao médico, o vô ficava muito preocupado, pedindo que ligássemos para ela porque a caboquinha ainda não tinha chegado. Era ele que todo dia arrumava a cama em que os dois dormiam. Ele escrevia a lista de compras do supermercado. Enquanto a vó cozinhava, ele ficava lavando a louça e de vez em quando lavava utensílios que a vó ainda ia usar de novo. Isso fazia ela mandar o vô ir embora de lá. Ele cortava rapadura como ninguém, em bloquinhos perfeitos, coisa que eu nunca consegui.

O vô ria de uma maneira curiosa, aí a gente sempre pedia para ele rir. Em uma dessas ocasiões a foto que abre o texto foi tirada. A vó ria da risada do vô. Teve uma vez quando os dois eram mais novos, que um sujeito interessado na minha avó perguntou como ela teve coragem de casar com um homem tão feio. Gente, a vó esculhambou tanto esse cidadão! Do caboco dela ninguém fala! E ela tinha ciúmes dele, principalmente quando alguém dizia que ele era um senhor muito bonito e arrumadinho.

Ursulino usava joelheiras, já havia feito uma cirurgia no joelho e nunca ficou totalmente recuperado. Ele gostava de ficar no portão olhando o movimento da rua. Quando a vó ia à feira, ele aguardava no portão para segurar as compras. Ele tinha trauma de cachorro e ninguém nunca entendeu o porquê direito. Quando apareciam morcegos, a gente chamava o vô para matar. Meus apelidos eram neném e pequenina, mesmo quando eu já era meio grandinha, quase maior do que ele. As manhãs o vô passava comendo bolachas de coco da Mabel, enquanto sua esposa avisava “Você não vai almoçar, Lino".

Com o tempo ele parou de usar aquelas sandálias em que você simplesmente encaixa o pé, porque ele caiu na cozinha uma vez. Desde então só usava sandálias que prendiam atrás. Ele lia a Veja, na época que meus avós ainda assinavam a revista. A vó chamava ele de meu velho, estava sempre levando-o ao médico para se certificar de que estava tudo bem. Soube por uma prima minha que ele gostava dar nome às bonecas dela, uma se chamava Bambina. Certa vez, não me lembro o motivo, pedi para ele falar Big Brother Brasil e ri demais da maneira como ele falava “Biggi Brodi Brasil".

A vó ficava brava com ele porque achava que seu velho passava muito tempo secando as louças. Os dois já moraram juntos em Manaus, Brasília, e só depois vieram para Goiânia. Tudo isso carregando os quatro filhos. Seu Ursulino era quem sempre conferia a loteria. Ele também separava o feijão. Nós dois fazemos aniversário no mesmo dia, 22 de outubro. Teve uma vez que ele prendeu o dedo na porta e chegou dizendo que havia “espocado o dedo". Rimos, fazia tempo que não ouvíamos a palavra espocar. Minha avó dizia que ele era muito friorento, qualquer ventinho colocava seu casaco aveludado. Quando gostava de algo, dizia “Beleza palma". A vó sempre falou palavrão, mas ele nunca!

No enterro dele, minha vó passava as mãos no rosto do seu velho como fazia antes de perdê-lo. A vó passou a usar as duas alianças depois que ele faleceu. Foram 90 anos bem vividos, a maior virtude dele era a paciência, nunca levantou a voz para ninguém. Foi amado e continuará sendo.

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